Rachel de Queiroz uma filha que Quixadá adotou.
A fazenda "Não Me Deixes", quase 30 km da sede do município, e foi um presente de seu Daniel à primogênita. Ela construiu a casa no local que o pai indicou.
Na estrada, a mata em flor. Os cálices roxos das jitiranas entre miríades de corolas, explodindo em amarelos, azuis, violetas, outras alvas feito capuchos de algodão, da rubra cor de sangue ou rosa pálido. Os monólitos, por toda a parte, ossos minerais da montanha primordial.
No oco das locas, nas brechas dos paredões desabados, finas fendas, em qualquer nicho com um pouco de água: o verde-verde das bromélias e cactus magrelos de braços abertos ao céu de anil.
Um jabuti arcaico cruza a pista em fogo, lento. Escapou salvo e são da velocidade dos pneus.
Nada nesta paisagem viva lembra o horror de 90 anos atrás, quando o Ceará foi assolado por uma seca medonha. Houve outras piores depois, em 1919, 1932, 1942, a de 58...
Porém, no imaginário brasileiro, a seca do 15 plasmou-se como sinônimo de retirantes aos magotes, carcaças ressequidas dos bichos exaustos, e sombra só a da Velha do Chapéu - o nome sertanejo da fome - devorando o pouco que o sol não conseguiu matar.
E por que esta permanência, ao ponto de, ao tempo de minha infância, menina magra demais, ganhar na escola o terrível apelido de ''Seca do Quinze''? Hoje tenho certeza que o motivo foi este livrinho, escrito pela filha mais velha de dona Clotilde e seu Daniel.
Voltar ao sertão que Rachel de Queiroz imortalizou no romance "O Quinze", publicado em 1930, quando a autora não tinha ainda completado 20 anos, é visitar a fazenda de seus ancestrais, o Junco. E também o pedacinho que ela construiu pra nunca olvidar seu clã.
Para chegar ao "Não Me Deixes", a generosa companhia de Rosita Ferreira de Souza, bióloga e professora, secretária e amiga fiel. Rosita é neta da famosa Madinha - Francisca Ferreira da Silva, a quituteira da fazenda Califórnia (da avó de Rachel - Rachel também), personagem do livro "A Cozinha do Não Me Deixes".
''A fazenda já tinha este nome. Era do tio-avô dela, Arcelino de Queiroz. O ano exatamente eu não sei, mas foi em 1954 ou 55. Me lembro muito bem do marido dela, o doutor Oyama de Macedo, dirigindo um jipão, vinham por terra do Rio de Janeiro pra cá. Ainda não tinha energia aqui, e eles passavam logo lá por casa e pegavam a lâmpada de gás'', lembra.
Rosita conta como foi a inauguração: ''Ela deu uma grande festa, a Festa da Cumeeira. Potes e potes de aluá, muita tapioca, bolo de milho, de macaxeira, milho cozido. Saí de lá duas horas da madrugada e ainda ficaram dançando. Aqui tem um morador que toca sanfona. Ela pedia: 'Rosita, chame ele aqui pra tocar!' E ele ia, era assim. Rachel era muito divertida e gostava que os moradores participassem. A última vez que ela veio foi em 2001, passou quatro meses. Parece que estava se despedindo''.
A casa-grande é precedida por um bosque de pau-branco louro. Uma placa na entrada informa que o "Não Me Deixes" é reserva particular do patrimônio natural. Em 2001, mais de 300 pássaros apreendidos pelo Ibama foram soltos lá.
''A terra é boa, dá muito algodão, milho e feijão. Este ano choveu todo o maio e junho, e o açude tomou mais de meio metro d'água'', conta ela.
A casa-grande foi feita ao modo da casa velha do Junco, arrodeada de alpendres, com chão de tijolos. As janelas abrem para fora, e ficam firmes com prendedores em forma de bonequinhos, feitos uns de ferro, outros de madeira.
Toda branca de cal, as portas e janelas são pintadas de azul Delrey 26. Pertinho, vê-se a casa do feitor, Manoel Dias Tavares, 62 anos, filho de uma amiga de infância da escritora. Quem cuida da casa é a mulher dele, dona Alzenir Ferreira Lima, auxiliada pelo copeiro Aldemir Gomes da Silva, 23.
''Rachel era caridosa, muito caridosa. Desde 1976 que eu faço os pagamentos da fazenda. Me dizia, quando aumentar o salário, pague. Não deixe meus caboclos passarem necessidade'', relembra Rosita.
As ramas de simpatia emolduram a cerca que despenca pra banda do açude, pertinho da casinha anexa que era o escritório sertanejo de Rachel: foi ali que ela escreveu o "Memorial de Maria Moura". No alpendre, a rede de tucum balança vazia na aragem da manhã. À esquerda, um pelotão de mandacarus e seus lindos frutos vermelhos.
Dentro, a simplicidade impera. Todos os móveis foram feitos com cumaru da fazenda, e não foram envernizados. Luxo só esta cadeira bem larga, capaz de acomodar um amigo bispo, que era pleno de carnes. Baús tacheados, um deles, em canto nobre da sala, com as iniciais A.M.B. - de Arcelino Matos Brito, primo e primeiro grande amor de Rachel de Queiroz.
No quarto que foi dela, a cama de dossel, uma imagem do Padre Cícero. Agnóstica sim, mas também uma mulher de fé. ''Ela queria muito bem a Santo Antônio".
E acompanhava o terço pra Santo Izidro, rezado na beira do açude com cantoria. Mandava celebrar missa aqui, era o padre Pimentel que vinha, Rachel fez até um artigo sobre ele, 'Padre Vaqueiro'. Ele pegava boi com os outros.
Foi muitos anos vigário em Aquiraz. Hoje reza missa na igreja de Nossa Senhora da Saúde, no Mucuripe. É uma missa cantada, do Nome do Pai até o Amém. "Ai, meu Deus, que padre danado aquele!''.
As estantes abarrotadas se espalham pelos cômodos da casa. Entre tantos livros, um antigo exemplar da revista A Recreativa, de palavras cruzadas. Nas paredes, fotografias. Uma é em preto e branco, com a mocinha Rachel, a menina Maria Luíza e os pais. A sala de jantar e a cozinha, duas bonitezas. Potes e quartinhas, panelas de barro e colherões de pau.
E o fogão de ferro a lenha, onde referveram os tachos de doces e os quitutes que a senhora-dona gostava tanto de fazer. Boca boa, a Rachelzinha. ''Almoçava e jantava comida, arroz, feijão. Gostava muito mesmo era de carne, aqueles filés sangrando. Levava daqui pra ela, no Rio, carne de carneiro e as tilápias do açude''. Doida por uma tapioca, feita especialmente pra ela pela Rosita, ''um papelzinho, bem fininha. Mas ela também gostava muito de restaurante, de almoçar fora''.
Aldemir vem chegando com uma bandeja, uns copos cheios de um líquido de cor dourada, que brilha ao sol matutino. ''É a cajuína feita aqui no 'Não Me Deixes'. Pura, sem mistura''. Menino, nem te conto a delícia que é...
O último dia
Rosita Ferreira conta nesta parte da conversa os instantes derradeiros de Rachel de Queiroz. ''Fui a primeira vez no Rio em 77, na entrada dela na Academia Brasileira de Letras. Ela estava aqui no "Não Me Deixes", quando o escritor Antônio Houaiss ligou lá pra casa. A posse dela foi coisa importante, até cinco da manhã tinha gente fazendo discurso. Foi no dia quatro de novembro de 1977. E, coincidência, Rachelzinha morreu no dia 4 de novembro de 2003.
Bem, depois da posse na Academia, fiquei indo ao Rio todos os anos, todo dia 17 de novembro, para o aniversário dela. A última vez fui e permaneci, até ela morrer. Sabia que ela conheceu o momento em que ia embora?
Ela disse: "Rosita, eu hoje vou preparar um banquete para os meus pais, meus irmãos, minha filha e meus maridos, hoje eu vou pro Ceará. Mas nesta viagem você não me acompanha, vou só".
Isso era uma segunda-feira, dia 3 de novembro de 2003. Ela disse mais: "já conversei neste instante lá nos Altos, tá tudo acertado, eu vou morrer e vou direto para o Céu".
Eu disse baixinho, no ouvido dela, quem já viu herege ir para o Céu? Ela me respondeu, você que pensa, já acertei tudo, viu? E se eu morrer aqui no Rio, vou me enterrar no túmulo do Oyama, no São João Batista, quero ir pro mausoléu de Academia não.
"Se for no Ceará, é na Califórnia, no túmulo do meu pai". Ela dizia que não tinha religião, mas toda noite se benzia, rezava o Pai-Nosso, a Salve-Rainha.
Na manhã do dia 3, ela se levantou, tomou o café como de costume, almoçou na mesa. A Izinha (Maria Luíza) estava lá, tinha chegado de uma viagem.
Nesse dia, ela teve duas isquemias, o lado direito ficou paralisado. Dez, dez e meia da noite, pediu pra ir pra rede, uma rede bonita que eu dei pra ela. Ficou conversando, não tremia a voz, nada. Quando foi duas e meia da manhã, eu disse, Rachelzinha vá dormir, a senhora tá cansadinha. "Como posso dormir com esta angústia que estou sentindo"?
Passei a mão na cabeça dela, ensopada de suor. Chamei a acompanhante, trocamos a roupa, botei bem perfume, ela gostava muito de colônia, penteei. Disse, pois agora vou chamar o médico. 'Médico não resolve isso não..." De meia em meia hora, a gente se comunicava, quando eu não ligava, o médico dela ligava pra mim.
"Minha filha, Rachelzinha não parava de conversar. Ela não abria os olhos, mas conversava tudo explicado''.
''Só foi me deitar, a acompanhante me disse, dona Rachel não falou mais, está parada".
Parece que ela morreu.
- Que é isso, menina? Tem nem cinco minutos que saí de lá! Corri, cheguei, passei a unha na planta dos pés, tudo paralisado. Vi que ela estava sem vida.
Veio logo o médico, com tantos acessórios, tanta sacola. Ele disse: não tem mais nada a fazer. Ela, serena, os olhos fechados, não foi necessário botar nada de algodão nas narinas, nada. Rachelzinha desapareceu assim. Como um anjo.
Agora, só não gostei do padre da Academia dizer que não celebrou missa de corpo presente porque Rachel não tinha fé. A encomendação do corpo foi feita por monsenhor Alencar, parente dela.
Ela que desenhou o fardão da Academia e com ele foi sepultada. Voltei para o Leblon. Aquilo sem Rachel era um vazio, meu Deus.
Velhos Amigos
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